Teses da Conferencia sobre a América Latina, convocada pelo PO Da Argentna e o PT do Uruguai (I)


1. O aspecto político mais proeminente que confronta a esquerda da América Latina é o colapso dos governos nacionalistas ou de centro-esquerda, do chavismo na Venezuela até o petismo, o Kirchnerismo e o 'luguismo' no Brasil, Argentina e Paraguai, respectivamente. Dentro desta tendência aparecem no radar a “Frente Cidadã”, no Equador, o indianismo na Bolívia e a Frente Ampla no Uruguai. Outro aspecto crucial é o destino da Revolução Cubana.


A situação política em que se encontra a esquerda na nova etapa está determinada, em grande medida, por sua política durante a experiência nacionalista. Por isso, para lidar com o novo período é necessário um balanço rigoroso da ação política na fase anterior. O conjunto das forças políticas presentes, sejam burguesas e principalmente a esquerda, não entram nesta etapa como um papel em branco, que estaria aberto abstratamente a todas as possibilidades oferecidas pelo novo período. Pelo contrário, estão condicionadas pelos seus programas e por suas políticas precedentes e até pelos compromissos amarrados na fase que agora está se esgotando.


Nacionalismo burguês


2. O colapso das experiências nacionalistas em questão é, antes de mais, um resultado político concreto da bancarrota mundial capitalista, que assumiu um caráter de conjunto da crise bancária-hipotecária de meados de 2007. É uma conseqüência política objetiva do colapso capitalista. Em graus diferentes, a bancarrota capitalista tem afetado a todos os regimes do mundo inteiro, desde, por exemplo, as revoluções árabes até o recente referendo sobre a separação da Grã-Bretanha da União Européia. Na América Latina, é evidente de Porto Rico e Cuba até a Colômbia. É retomada com toda força a atualidade da questão da independência nacional de Porto Rico. É necessária a análise materialista deste colapso político.


Empurrado para o poder político por bancarrotas econômicas extraordinárias, desde o início da década de 1990, o nacionalismo de conteúdo burguês esgota-se agora como resultado do aumento e aprofundamento daquelas bancarrotas. O chavismo e o nacionalismo militar venezuelano emergiram do ajuste criminoso do governo AD, em 1989, e do caracaço; o kirchnerismo, uma metamorfose do menemismo como conseqüência do argentinaço; o longo processo de desenvolvimento do PT culmina no governo de Frente Popular, em 2003, após a bancarrota brasileira que se sucedeu à crise asiática, o colapso financeiro da Rússia e explosão, de alcance sistêmico, do fundo LCTM dos Estados Unidos. Os ascensos de Evo Morales e Rafael Correa, nesse mesmo período, 2000/4, foram o resultado retardatário e distorcido de grandes insurreições das massas, detonadas pelas crises das privatizações anteriores.


Como resposta defensiva à crise mundial, o nacionalismo burguês encontra seus limites intransponíveis nesta mesma crise mundial e no declínio histórico do capitalismo.


3. O processo nacionalista burguês das últimas duas décadas caracteriza-se, além disso, por uma proposta de desenvolvimento capitalista fortemente parasitário. Nos meandros da crise mundial, a América Latina assistiu a dois ciclos de grandes aumentos dos preços internacionais das matérias-primas. Foram descritos como o fim da tendência à deterioração dos resultados negativos do intercambio comercial. Os superávits comerciais causados por estes aumentos deram origem, por sua vez, a um novo ciclo do endividamento internacional (público e privado), promovido pelo apoio oferecido pelo crescimento das reservas internacionais. O pagamento da dívida externa herdada foi feito com a emissão de dívida interna e o esvaziamento dessas reservas. A abundância de liquidez foi aplicada à expansão sem precedentes do crédito ao consumo, a taxas de interesse excepcionais ou subsidiadas pelo Estado.


Desenvolveu-se, dessa forma, um populismo “bancário”, que engordou os benefícios financeiros em detrimento de uma hipoteca crescente das famílias. Foi uma versão latino-americana dos créditos "subprime", que detonaram a crise nos Estados Unidos. Os chamados planos sociais, em muitos casos financiados pelo Banco Mundial, embelezados pelo 'conto' do fomento do consumo, esconderam a falta de criação de emprego e a quase nenhuma industrialização, e agora estão ameaçados por enormes déficits fiscais (que eles obedecem, é claro, a outras razões, em primeiro lugar o pagamento de juros usurários da dívida pública e o financiamento público subsidiado para os capitalistas). O mito da criação de uma classe média se derrete agora à vista de todos como a neve às vésperas do verão.


Longe de ter se esquivado da bancarrota capitalista mundial, a gestão política nacionalista (às vezes chamada de progressista) operou para converter a nações da América Latina em um despejo de lixo do capital financeiro internacional – que encontrou nessas gestões o mercado para seus excedentes de produção, rentabilidade dos investimentos financeiros e a recuperação de seus créditos incobráveis. As empreiteiras de obras públicas 'nacionais' tiveram uma expansão sem precedentes no Brasil (claro!), na América Central, Venezuela, Cuba, Peru e Argentina, acompanhadas de um elevado endividamento internacional e um festival de superfaturamentos.


O colapso das experiências nacionalistas vem acompanhado pelas falências das empresas estatais e privadas (da Odebrecht e o complexo em volta da Petrobras até as telecom ou a siderurgia no Brasil, ou a YPF e sistema energético na Argentina e Pdvsa; déficits fiscais extraordinários e, finalmente, o defol de fato da dívida externa, que só é honrada com novas dívidas de taxas onerosas e a venda de ativos industriais).


4. As experiências nacionalistas das duas décadas recentes estão muito aquém das realizações das que a precederam – como o primeiro peronismo, o varguismo, o nacionalismo boliviano desde a guerra do Chaco ou o velazquismo equatoriano. Rafael Correa segue empenhado ainda em conciliar a proposta nacionalista com a dolarização e a autonomia econômica com o rentismo petroleiro. Para isso contraiu, da mesma maneira que a Venezuela, uma dívida impagável com a República Chinesa, contra a garantia da entrega do petróleo. Ao “eterno retorno” do nacionalismo aplica-se aquela frase de Marx em relação à repetição da história. O sujeito histórico do nacionalismo – a burguesia nacional -, que, além disso, se faz por movimentos pequeno burgueses, militares ou inclusive de “trabalhadores” (PT), é mais impotente que nunca para encarar uma iniciativa nacional autônoma, no marco da decadência do capitalismo mundial. As segundas partes não foram, então, melhores; o nacionalismo é uma proposta historicamente em retrocesso, inclusive quando assume posições nacionais progressivas de caráter parcial. O chavismo destacou-se como uma tentativa de ir mais longe que os que lhes precederam desacreditados dos adecos, e a distribuição corrupta do aparato do estado pelo Pacto do Ponto Fixo.  


O socialismo do século XXI


5. O esforço do chavismo por fundamentar sua experiência em termos bolivarianos (unidade continental) ficou sem destino – até mesmo as iniciativas do gasoduto do Sul ou do banco do sul. Estas propostas não foram levadas em conta quando se aprovou a entrada da Venezuela no MERCOSUL, ou quando se criou o Unasul (um veículo de exportação das empreiteiras brasileiras e da Embraer), ou menos ainda na ocasião da criação do Banco de Desenvolvimento proposto pela China. A questão bolivariana foi reduzida a uma invocação nacionalista romântica, com a finalidade reacionária de realçar as forças armadas. Foi usada como um instrumento de propaganda política contra o colombiano Uribe, que foi designado como um descendente direto do general Santander – que dividiu a então Grã – Colômbia.


Por outro lado, ignora-se o conteúdo contra-revolucionário que contem o rótulo do socialismo do século XXI – inventado, além disso, não por Chávez, mas por um acadêmico diletante, Heinz Dietrich, que já faz tempo deu marcha à ré e passou a alardear a conciliação com os esquálidos. Dietrich não foi o único conselheiro que conseguiu a atenção superficial de Chávez; outros lhe aconselharam a promover a criação da V Internacional, que não teve a menor importância. A etiqueta do século XXI é uma réplica de negativa, não já para a revolução bolchevique de 1917, mas à revolução cubana, o estágio mais elevado que atingiu a revolução latino-americana. A revolução cubana (século XX) começou com uma abordagem democrática e chegou à expropriação massiva do capital estrangeiro e nacional. Os simpatizantes mais politizados do chavismo ignoram o significado estratégico do recuo programático e estratégico que está contido nesta preferência pelo século XXI.


A atualidade da revolução socialista emana do ingresso do capitalismo na época do declínio ou decadência histórica, da época em que o desenvolvimento das forças produtivas assume um caráter cada vez mais parasitário e destrutivo, quando a contradição delas com as relações de produção e as estruturas estatais e nacionais torna-se mais violenta. O rótulo de Século XXI, que não é usado somente para banalização ao socialismo, mas é invocado para troco de nada, não passa de recurso publicitário ou de marketing político.


O ponto de partida desta decolagem política que, iniciou de fato, o movimento Sandinista, que, ao contrário da Revolução Cubana, atolou a revolução vitoriosa de papel mais importante das massas na história da América Latina (uma guerra civil de massas que deixou 50 mil mortos em poucos meses), através de uma política de conciliação com a burguesia democrática… Fê-lo em total acordo com a antiga burocracia da URSS e o castrismo, que por essa época já tinha abandonado o foquismo e buscava essa mesma conciliação com as burguesias latino-americanas e os EUA. Anos mais tarde, o movimento Sandinista voltou ao governo como um gendarme da ordem capitalista, comandado por Daniel Ortega. O socialismo do século XXI postula uma mudança social nos marcos do capitalismo, sem revolução, ou seja, sem a destruição do aparato de estado existente e sem governo de trabalhadores (ditadura do proletariado). A roupagem militar e o apoio popular não convertem ao chavismo em socialismo de qualquer tipo, mas em um 'replay' da demagogia socialista que tem caracterizado todos os movimentos nacionalistas no mundo. Isso tem sido assim desde o declínio da Revolução francesa e, em particular, de Napoleón III e Bismarck – os 'populistas' por excelência (caracterizados por promover a maior acumulação de capital no século XIX).


Nacionalizações


6. Aonde mais se observa o declínio do nacionalismo de conteúdo burguês é no campo das nacionalizações. Em geral, a nacionalização parcial do capital estrangeiro obedece ao propósito de promover o desenvolvimento das forças produtivas que a burguesia nacional é incapaz de fazer por causa da pressão do capital financeiro internacional. Neste sentido, as nacionalizações procuram melhorar o campo de exploração social da burguesia nacional e oferecer uma base mais sólida para o Estado capitalista. No momento oportuno, estas nacionalizações podem reverter-se em privatizações em benefício dessa mesma burguesia nativa na medida em que se está desenvolvendo em forma suficiente para isso. As nacionalizações mais avançadas do nacionalismo latino-americano foram a do petróleo mexicano por Lázaro Cárdenas; a da United Fruit, na Guatemala; a mineração na Revolução Boliviana de 1952 e a do petróleo em 1970; e as do petróleo e as fazendas da Costa pelo governo militar peruano.  A esquerda insiste em confundir as nacionalizações burguesas com a expropriação do capital que tem como sujeito o proletariado e o governo dos trabalhadores. A expropriação sem indenização do capital por parte da Revolução Cubana constitui uma transição histórica entre as nacionalizações burguesas mais avançadas e as nacionalizações que fazem os governos dos trabalhadores que emergem das revoluções proletárias. O conteúdo histórico delas está condicionado pelo curso posterior da luta de classes, nacional e internacional. A esquerda é responsável pela abertura de uma discussão deste processo, com base em uma investigação, ao invés de substituí-lo com simples etiquetas.


Em numerosos casos, as nacionalizações burguesas operam como um resgate do capital estrangeiro cobrado das finanças públicas. Esta renúncia fiscal conspira contra o posterior desenvolvimento das forças produtivas proposto pela nacionalização. Os casos mais conhecidos são o executado pelo primeiro Peronismo em relação ao capital britânico que precisava de uma retirada. O caso das ferrovias é paradigmático, porque eles enfatizaram uma deterioração que já faz quase um século. Para atingir seus fins, o imperialismo britânico bloqueou os créditos da Argentina depositados em Londres. O mesmo pode ser dito da nacionalização do petróleo da Venezuela, na década de 70, que serviu para financiar uma especulação imobiliária enorme e ainda maior corrupção.


Num contexto diferente, o governo de Chávez fez o mesmo com a nacionalização das telecomunicações (Verizon) e siderurgia (Sidor), às custas das enormes receitas de petróleo. Em um caso as compensou por um preço elevado da Bolsa (que se estabelece, especulativamente, pela rentabilidade esperada, em vez do valor dos ativos), ou seja, com um prêmio sobre o capital. A nacionalização beneficiou a Verizon em outro aspecto, porque, em seguida, sua cotação caiu em forma acentuada como resultado da crise financeira internacional. Em outro, Sidor, o Estado assumiu todas as dívidas ocultas (passivo trabalhista) do Grupo Techint, que resultou em uma enorme indenização.  A nacionalização deste tipo constitui uma transferência de renda dos trabalhadores para os capitalistas estrangeiros, através da despesa fiscal. Representam uma descapitalização e, portanto, uma hipoteca para o desenvolvimento das forças produtivas. O colapso das empresas nacionalizadas, na Venezuela, tem levado a um declínio nas expectativas estatizantes na consciência das massas, que se utiliza a direita para promover o retorno do programa privatizador.


A nacionalização de 51% do capital da Repsol-YPF, por Kirchner, se fez às custas de uma substancial indenização por uma empresa que tinha esgotado as reservas de petróleo e gás. O 'conto' nacionalizador escondeu uma reprivatização do petróleo na Argentina, pois a YPF se converteu numa empresa mista que cotiza nas bolsas internacionais. O conto 'nacional e popular' do Kirchnerismo é, também, particularmente 'curioso', porque seu principal esforço foi direcionado para preservar, com subsídios, para eles, as empresas privatizadas do Menemismo. O resultado tem sido, em geral, um grande esvaziamento produtivo e industrial na área de energia. Na onda da demagogia estatizante, a Frente de Esquerda, na Argentina, desenvolveu uma forte denúncia contra a reprivatização do petróleo, que foi então confirmada pela associação secreta da YPF com a americana Chevron.


O manifesto político apresentado pelo Partido Obrero à FIT para a campanha eleitoral de 2013, focou-se em uma crítica marxista das nacionalizações capitalistas, suas contradições e limitações.


Outra questão que deve ser discutida é a nacionalização do petróleo na Bolívia, que não é bem assim. Consiste de uma grande mudança na tributação do capital internacional de petróleo, que tirou as finanças públicas do déficit crônico. O indigenismo oficial alcançou, por esta via, desviar a reivindicação da nacionalização total que fez a insurreição de outubro de 2003. A mesma coisa aconteceu com a questão agrária, culminando em um compromisso com a burguesia sojeira de Santa Cruz e do leste da Bolívia, materializada em uma nova Carta Constitucional. O compromisso com as companhias de petróleo foi possível devido ao enorme aumento dos preços internacionais dos combustíveis. Numerosos agrupamentos de esquerda e sociais que apóiam a FIT na Argentina, apóiam o indigenismo pequeno burguês do Alti-plano sem definir uma posição programática sobre este pseudo nacionalismo de conteúdo capitalista. A doutrina estratégica do indigenismo boliviano é o desenvolvimento do "Capitalismo andino" (tinha sido batizado de "Socialismo Andino"), definido como uma aliança entre o capital estrangeiro, o Estado boliviano e o precapitalismo agrário. A proposta comete a gafe 'teórica' de apontar o estado como uma categoria social e de classe, ao lado de outras classes, ou seja, que não está acima das classes, porque é uma superestrutura política, refletindo e protegendo, como tal, a estrutura social dominante (é o “marxismo do século XXI"). Durante o período recente, a Bolívia tornou-se um negócio próspero das empreiteiras brasileiras incluídas na “lava jato”.


Brasil


7. As limitações colossais deste nacionalismo explicam, por um lado, o escasso desenvolvimento das forças produtivas na década e meia passada, assim como o impacto que causou a bancarrota capitalista mundial, nos dois episódios principais – a queda de preços internacionais e a saída de capitais de 2009 e, com mais severidade, a atual. O sempre esgrimido crescimento do PIB não capta esse desenvolvimento. O desenvolvimento das forças produtivas é medido pela qualidade do investimento reprodutivo, a aplicação de tecnologia, o nível de capacidade da força de trabalho, o desenvolvimento da educação, da saúde, o progresso habitacional e a infraestrutura urbana. Uma centralização produtiva dos recursos econômicos existentes deveria operar como uma alavanca industrializadora potente.


O governo PT/PMDB do Brasil tentou converter a Petrobrás, companhia mista majoritariamente estatal, nesta alavanca industrial: mediante o investimento da maior parte dos lucros; o monopólio operacional das associações com o capital estrangeiro; um importante trabalho de tecnologia; e o desenvolvimento de um entorno de serviços tecnológicos, de prestadores de serviços e empreiteiras nacionais sem proceder a nacionalizações, desenvolveu até certo ponto um nacionalismo burguês e da grande burguesia. Utilizou as contribuições operárias nos fundos de pensões e impulsionou a arrecadação fiscal ao banco público de desenvolvimento – BNDES, com essa mesma finalidade. Tentou, inclusive, impulsionar a criação de uma burguesia petroleira nacional, através do apoio ao aventureiro Eike Batista.  O colapso fenomenal desta tentativa estabelece uma conclusão sucinta, porque terminou na quebra de todos os setores envolvidos e, golpe de Estado mediante, desde o próprio oficialismo, na venda acelerada de ativos industriais e na revogação das principais limitações impostas ao capital estrangeiro. A queda vertical dos preços internacionais do petróleo, as pressões provocadas por um elevado endividamento internacional, a desvalorização do capital cotizante e, não menos importante, a difusão da enorme corrupção de toda esta trama política e econômica (por parte dos setores interessados em derrubá-lo), tudo isto está metendo o Brasil em uma crise de maior alcance que a dos anos 30. O ataque ao movimento operário é devastador.


8. A esquerda brasileira, frente à crise de conjunto do capitalismo, depara-se com a obrigação de desenvolver um programa operário e socialista, ou seja, um governo de trabalhadores, a nacionalização sem pagamento dos bancos e dos monopólios petroleiros, o mesmo com toda empresa que feche, a escala móvel de salários e horas de trabalho, a abertura dos livros de todos os monopólios capitalistas, o controle operário e a convocação de um plano de ação com toda a esquerda e setores combativos da América Latina.


Ocorre, no entanto, o contrário: propõe a fórmula da democracia, ou seja, sem transição revolucionária, nem governo dos trabalhadores. Quando ainda nem se encerrou a etapa do golpe de Estado que destituiu Dilma Roussef (longe disso, o governo golpista reúne uma base parlamentar precária), a agenda dominante na esquerda brasileira são as eleições municipais de outubro próximo e a possibilidade de consagrar prefeita de São Paulo a uma candidata patronal, Luiza Erundina, que já governou esta cidade em termos puramente capitalistas. Erundina é uma ex-petista, oriunda da ala clerical, ministra do governo de Itamar Franco e até há pouco membro do partido de direita, PSB, e apoiadora do candidato Eduardo Campos, que morreu em um acidente na campanha eleitoral do ano passado. A candidata foi lançada pelo PSOL, uma frente de esquerda e das comunidades de base que romperam com o PT há mais de uma década. O grupo ligado ao PTS na Argentina pediu seu ingresso no PSOL. No entanto, em sua terra natal, sua casa central, reivindica a independência política da classe operária e a hostilidade às candidaturas patronais. Esta duplicidade entre o principismo e o oportunismo, é característica de todas as correntes centristas. O PSOL, em contraste com a FIT da Argentina, que chamou o voto em branco contra Scioli e Macri na Argentina, apoiou no segundo turno eleitoral das eleições passadas a candidatura de Dilma Roussef.


Em oposição ao julgamento político de Dilma Roussef, o PT e grande parte da esquerda tem se refugiado na reivindicação de um plebiscito que autorize a antecipação das eleições para a presidência (que deveria ter lugar em 2018), o qual deve ser votado pelo mesmo parlamento golpista e de ladrões. A proposta conta até certo ponto, com a simpatia de uma parte da imprensa golpista, que visualiza a impossibilidade de um ajuste a fundo da economia sem um governo eleito desvinculado do pessoal político submetido aos processos judiciais contra a corrupção. No Brasil existe uma desintegração expressa da burguesia contratista (empreiteiras) e o desenvolvimento de uma reconfiguração capitalista acompanhada por quebras, resgates e concentração de capitais. A proposta de eleições presidenciais ou gerais de parte da esquerda, não faz referência à derrubada do governo Temer por meio de uma ação direta das massas, que ligue a luta contra as demissões, a carestia e as privatizações aos métodos da greve e da greve geral. Os observadores políticos prevêem que a realização de novas eleições daria a vitória a uma das diversas coalizões direitistas presentes.  A palavra de ordem eleitoral não educa aos trabalhadores em uma política de luta de classes. Busca-se uma saída imediata à crise política, ou seja, um compromisso, em lugar da preparação sistemática da classe operária para lutar por um governo dos trabalhadores.


No Brasil, a esquerda integrada ao PT impulsionou a chegada desse partido ao governo em coalizão com o PMDB. Isto ocorreu inclusive depois que Lula firmou o acordo com o FMI, na campanha eleitoral de 2002 e nomeou o atual ministro da Fazenda de Temer para a presidência do Banco Central, depois de um acordo fechado entre Lula e William Rhodes, então presidente do Citibank (W. Rhodes, Financial Times, 24.06.2004). O PSOL reivindica, de conjunto, o PT “das origens”, ou seja, que segue aderindo à perspectiva estratégica traçada pela direção fundadora do PT, inclusive depois da experiência e os resultados políticos de quase quatro décadas. A partir desta reivindicação do ponto de partida está seguindo a seu modo o rumo do seu espelho retrovisor.


Em oposição a esta linha estratégica, é necessário um debate que estabeleça um novo ponto de partida, ou seja, um programa e uma política realmente socialistas.


A este debate deveria integrar-se o PSTU, o qual acaba de sofrer uma cisão em torno à questão do recente golpe de Estado, por um lado, e do caráter das mobilizações anti-governamentais a partir de 2013. As propostas democratizantes da esquerda demonstram toda sua inconsistência frente à derrubada dos processos nacionalistas e à crise de regime que emergiu como sua conseqüência. A América Latina ingressa em uma nova etapa de maiores confrontações sociais e políticas que superam os limites de seus Estados.


Golpismo


 9. O impeachment contra a presidenta Dilma Roussef e sua eventual destituição constituem um golpe de estado “tout court (curto e grosso)”, sem acréscimos, porque implicam uma virada política reacionária nas relações de classe existentes. Substitui a um governo que revelou sua inconsistência para aplicar a política de ajuste que reivindica o capital e para resgatar ao pessoal político e aos grandes capitalistas dos processos judiciais por corrupção. Inaugura uma nova proposta de ofensiva contra as massas, sem esperar as novas eleições, nem obter um novo mandato eleitoral. O governo de Temer não é uma tentativa de interinato constitucional, mas sim uma nova coalizão política para uma nova política, que encare o resgate da quebra capitalista e uma ofensiva mais decidida contra os trabalhadores. Não existe uma mudança no caráter de classe do governo, mas sim uma tentativa de modificar a relação pré-existente entre as distintas classes.


Para a esquerda revolucionária, a luta contra o golpe é uma questão de princípios, porque significa defender as posições conquistadas pela classe operária frente à ofensiva capitalista – de nenhum modo apoiar ao governo capitalista destituído. Não defendemos “o mal menor”, mas sim a posição conquistada pelo proletariado dentro da sociedade e o Estado capitalista; por isso não esconde sua hostilidade com o governo estabelecido. A esquerda democratizante, ao contrário, atribui um caráter progressivo à gestão ajustadora de Roussef, inclusive quando muitos, entre essa esquerda haviam criticado e até enfrentado a política ajustadora dessa gestão. Por outro lado, aqueles que discordam da caracterização de um golpe de estado, destacam a identificação de classes entre ambos os bandos capitalistas, ignorando que representa um salto de qualidade do ataque do Estado capitalista contra as massas.


Àqueles a quem as formas constitucionais se identificam com o golpismo é oportuno recordar que o governo constitucional que iniciou em 1973, na Argentina, desenvolveu-se por meio de uma sucessão de golpes “constitucionais”, que primeiro eliminaram ao mandatário eleito, Câmpora, depois a governadores do mesmo campo político, inclusive por meios policiais; mais tarde, à criação da triple A e à militarização do país – um processo que culminou com a ditadura militar. Naquele momento, o Partido Obrero advertiu acerca da seqüência de golpes, que foram escamoteados nas formas parlamentares e na popularidade de Perón.


Apesar da falácia dos termos do “impeachment” (pedalada contábil de contas fiscais), Dilma Roussef, o PT e a burocracia dos sindicatos se recusaram desconhecer o voto do Congresso e propor um conflito entre poderes. A razão é que poderia ter aberto uma brecha para a intervenção das massas, por um lado, e para a intervenção das forças armadas, por outro, que teria sido em apoio ao Congresso. O árbitro do golpe de estado são as forças armadas, ainda que não se trate de um golpe militar. O golpe de estado no Brasil não é mais que o segundo ato golpista depois da derrubada de Lugo no Paraguai, o qual também se constituiu em um “impeachment” de seus próprios aliados de governo – o partido Liberal. A burguesia brasileira apoiou com força esse golpe, em uma espécie de ensaio geral do que se daria depois no Brasil. O movimento operário e camponês retrocedeu fortemente no Paraguai como conseqüência da vitória do golpe, enquanto que, por outro lado, facilitou uma avalanche de compras de empresas e terras por parte da burguesia brasileira, com a cumplicidade do governo de Dilma Roussef. A destituição de Lugo e de Roussef por parte de seus próprios aliados constitui uma prova contundente da falácia que aposta na colaboração de classes entre os partidos operários ou pequeno burgueses populares com a grande burguesia nacional e inclusive o capital financeiro internacional.            


Uruguai e Chile


10. A Frente Ampla do Uruguai passou por um processo parecido ao do governo da Frente Brasil Popular. Vasquez chegou ao governo em 2005 depois de um longo período de colaboração política com o imperialismo desde sua gestão em Montevidéu e o respaldo aos ataques patronais ao movimento operário (greve da construção civil). A FA se constituiu como uma frente “policlassista”, a princípio com o argumento que era o veículo das transformações democráticas, agrárias e antiimperialistas. O balanço é um aumento do submetimento ao capital financeiro, a primarização maior da economia, a concentração da terra, a desindustrialização e o avanço da especulação bancária-imobiliária.


A Frente Ampla leva adiante um ajuste contra o movimento operário, rebaixando salários e aposentadorias, aumentando as tarifas e os impostos ao salário, e cortando o gasto social na saúde e educação. A tentativa de proibição de greves (medida que já havia aplicado Mujica contra os municipários) provocou uma rebelião das bases dos sindicatos na educação, ao mesmo tempo em que reforçou a integração da burocracia sindical ao Estado (o caso de Castillo é um dos mais exemplares). Está se processando um aprofundamento da tendência à ruptura de um setor do ativismo com o governo. Neste quadro, a direita da FA se desloca até um governo de “unidade nacional”; de outro lado, as massas, na busca de um novo pólo político de caráter anticapitalista. A tese da ala esquerda da FA e em especial do Partido Comunista, de que os governos frenteamplistas não são governos do capital, mas sim “governos em disputa” é uma justificativa para continuar seu trabalho de retaguarda do imperialismo e neutralizar os protestos populares para um conflito interno dentro da Frente Ampla e do próprio governo. 


No Uruguai, no entanto, revela-se uma crise semelhante à que pôs fim ao governo patronal liderado pelo PT, no Brasil, incluindo a pretensão de Vazquez de desenvolver, como tentou Dilma Rousseff, um ajuste econômico e social sem ter que, primeiro, proceder com uma mudança de alianças e regime político. Em oposição às correntes frenteamplistas atual ou que já romperam com a FA (Assembléia Popular) de recompor "a FA das origens" ou copiar um chavismo a la uruguaio, o PT do Uruguai convoca os trabalhadores avançados a construir um partido revolucionário.


O Chile, após o retorno de Bachelet ao governo, assiste a uma profunda crise política a somente dois anos que um esgotado concertacionismo tentou reviver a "Unidade Popular", integrando ao governo o Partido Comunista. A crise da Nova Maioria enraíza-se na incapacidade de conter aos diferentes movimentos de lutadores que cortam o país, no marco de um capitalismo chileno que confiscou de uma maneira abismal os salários dos trabalhadores e a dilapidação dos recursos naturais. Trabalhadores terceirizados da mineração, florestais, portuários, do comércio e o varejo, ao lado de uma luta tenaz do movimento estudantil por uma educação gratuita, nos últimos dez anos têm sido a manifestação do estrangulamento das condições de vida das massas populares nas mãos de uma burguesia nativa aliada com o capital imperialista internacional. O resultado de quatro décadas de políticas "neoliberais" de abertura comercial, privatizações (incluindo o profundo confisco da poupança dos aposentados pelas AFP) e um trabalho flexibilizado estendido tem sido a base de um ataque brutal sobre os trabalhadores, que desenvolvem hoje respostas de luta em todo o país.


Esta versão ultra reacionária da colaboração de classe que é a Nova Maioria sofreu desde o início um retrocesso político, chegando ao governo com 60% de abstenção. Esta tendência continua se desenvolvendo como conseqüência de uma profunda crise política que coloca no centro a todos os partidos tradicionais que têm defendido por décadas a herança da ditadura. Esta versão degradada da política frente populista está fadada ao fracasso, já que suas pretensões de propor um plano de "reformas" sem alterar as bases sociais nem as instituições criadas sob a ditadura, não pode representar, sob qualquer termo, a canalização das aspirações sociais dos trabalhadores e dos setores populares… Estamos diante de uma política de resgate da herança deixada por Pinochet. Esta situação se agravará, produto dos golpes da bancarrota capitalista, donde a queda dos preços do cobre está diminuindo a arrecadação fiscal, empurrando uma política de ajuste e limitando um regime de arbitragem por meio da assistência social. As demissões começaram a massificarem-se no país, o que está dando origem a diferentes greves no setor do comércio e a luta dos trabalhadores do salmão em Porto Montt, que está marcando um ressurgimento do movimento operário baseado em piquetes, assembléias de base e greves ilegais.


Neste quadro da situação é colocada a tarefa central da batalha pela delimitação política da Frente Popular, baseada na iniciativa de recuperar as organizações operárias e estudantis para uma alternativa de independência política. No Chile começa a abrir uma nova etapa política, onde o esgotamento da experiência da Concertação abre um campo de ação para a construção de uma alternativa operária e socialista.


Chavismo


11. Outro elemento que se destaca para o posicionamento da esquerda nesta nova etapa é a experiência do nacionalismo Bolivariano como movimento popular ou de massas. O Chavismo realizou a maior transferência de renda dos rendimentos do petróleo em empreendimentos sociais (habitação, educação, saúde), possivelmente de toda história da América Latina. Esta agenda foi a menina dos olhos do seu programa.  Vê agora, tardiamente, os limites de aço de uma economia rentista, cuja bonança havia calculado para um século; o povo da Venezuela assiste, não já a descontinuidade desses planos sociais, mas a incerteza da preservação do que foi feito e a possibilidade da sua reversão. Isto é manifestado na disputa aberta da titularização da propriedade das casas construídas, devido à insegurança jurídica criada pela crise e a incapacidade do Estado para garantir toda a infraestrutura de manutenção e reparos, que estariam nas mãos das famílias beneficiárias.


Este gigantesco empreendimento social foi realizado por uma organização paralela ao Estado, as chamadas "missões". O Chavismo, com uma proposta em princípio mobilizadora, 'saltou' para o Estado, em vez de destruir o aparato burocrático desse Estado e transformá-lo em uma máquina dirigida por órgãos de poder das massas. Salientou-se, desta forma, a desqualificação e a precarização dos trabalhadores e dos serviços públicos desse Estado, o que explica a oposição gerada na saúde e educação. A mesma coisa aconteceu com as cooperativas que substituíram as empresas que aderiram à sabotagem do petróleo de 2002/3. É também o que fez o kirchnerismo, em versão farsesca com as cooperativas de trabalho ou de habitação dirigidas pela camarilha de Shocklender e Milagro Salas, entre outros. Assinalou-se, em geral, uma cooptação e arregimentação dos movimentos populares. A empresa capitalista, na Venezuela, não foi substituída por empreendimentos de gestão operária sob um plano econômico único e o desenvolvimento de uma legislação trabalhista mais avançada. As grandes empresas estatizadas crescem sob a negligência e a corrupção de uma burocracia oficial. O resultado da gestão Bolivariana não foi a consolidação do proletariado, mas uma atomização poderosa. Este é um risco fundamental da desintegração econômica que tem lugar nos dias de hoje.


O processo Bolivariano penetrou profundamente na esquerda da Venezuela, que tornou-se uma cobertura do chavismo, alegando que isso  desenvolvia um processo revolucionário, por exemplo, o Ccura e Maré Socialista. O chamado maoísmo tornou-se "minguado" como alguns ex lambertistas. Durante os eventos eleitorais, a esquerda tem participado, em locais diferentes, de frentes díspares e sem princípios determinados pelos cálculos oportunistas ocasionais.


É com este pano de fundo que entra em uma nova fase extraordinária, que anuncia mudanças radicais de regime, em um quadro de crise que envolve todas as classes sociais e todos os níveis do Estado, incluindo as forças armadas. Envolve diretamente ao imperialismo ianque, bem como Cuba e a vizinha Colômbia, para toda a América Latina e grande parte da União Européia. Os países 'aliados' do Unasul mudaram sua posição política, passaram ao campo diplomático que pressiona por uma mudança de regime na Venezuela, como o ilustrado pela posição do Uruguai. O macrismo argentino trocou sua violência inicial por uma posição favorável para uma transição acordada, como reivindica a administração de Obama.


12. Na Venezuela, um importante retrocesso político é processado. O regime plebiscitário de Chávez, que reivindicava para si a solidez do voto popular, tornou-se um regime de fato, que governa por decreto, violentando a soberania da Assembléia Nacional ganhada pela direita esmagadoramente nas recentes eleições. Este governo por decreto está se sustentando pelo apoio da cúpula militar, no quadro de uma rejeição majoritária da população, de acordo como indicam as pesquisas que não são questionadas. As forças armadas se encarregam da distribuição dos alimentos. Do lado econômico está em curso um plano de ajuste e de desvalorização externa do bolívar, que visa garantir o pagamento da vultosa dívida externa do Tesouro e da Pdvsa. Circulam propostas, no governo, para vender ativos estatais para pagar a dívida externa e melhorar a capacidade de importação do país. O que resta do capital estrangeiro se retira da Venezuela.


A "guerra econômica" que denuncia o chavismo desenvolve-se no âmbito desta desorganização econômica e da prioridade ao pagamento da dívida externa. O fechamento das contas dos bancos privados e do Banco Central, pelo Citibank, é, por um lado, uma expressão do estado de suspensão de pagamentos da Venezuela e, por outro lado, traduz a pressão de um setor do capital financeiro para acelerar o desfecho da crise política. O capital internacional se sente encorajado pela vitória do macrismo na Argentina, o golpe de estado no Brasil e o giro anti-chavista do governo do Uruguai. Os trabalhadores são chamados a lidar com fábricas que são esvaziadas ou não tem financiamento. A militarização crescente do Estado, mesmo que seja uma militarização 'Bolivariana', não é progressiva, mas reacionária. Historicamente, esses governos de fato presidiram as transições entre regimes políticos e até sociais, mediando entre as forças em disputa. Lembramos do golpe de estado 'Comunista' de Jaruzelsky, na Polônia, que contou com o apoio do Vaticano e serviu para a transição a um novo regime político. Precisamente por esta razão, setores cada vez mais vociferantes da direita venezuelana reivindicam um golpe contra Maduro às forças armadas chavistas.


Uma parte representativa da oposição esquálida completou um programa próprio para a crise. Mendoza, o proprietário da empresa nacional principal, a Polar, levantou um programa de aguçado caráter 'macrista': eliminação do controle das mudanças e dos preços regulados, apoiado por uma 'ajuda' ou socorro financeiro internacional, cujas fontes não definiu. O impacto deste 'rodrigazo' seria na Venezuela, consideravelmente mais catastrófico que o do macrismo – que, aliás, tem o apoio de todo arco político, especialmente do peronismo e do PJ. A transição política marcha a toda a velocidade, embora na superfície prime o imobilismo.


Entendemos que a esquerda venezuelana deve chegar a um acordo prático em torno a uma reivindicação política de conjunto. É a condição para que possa intervir como protagonista político independente nesta crise; pode reagrupar aqueles setores que romperam com o Psuv com propostas progressistas. Deve abrir essa discussão com máxima urgência. Em oposição ao governo militarizado de fato por um lado e a uma revogação de conteúdo direitista, que também parece incompatível com o acelerado ritmo da crise, a nossa proposta é a chamada para uma Assembléia Constituinte livre e soberana. A proposta deve servir para construir as assembléias populares que podem postular-se, eventualmente, como convocantes da Assembléia Constituinte. Uma proposta deste tipo iria servir, em qualquer caso, para que a esquerda apareça como uma candidatura autônoma para o poder, que permita intervir nas diferentes fases pelas quais vão passar por esta crise, que promete ser explosiva e prolongada.


Crise mundial


13. A crise aberta na América Latina não é uma simples eviidência de limitações políticas subjetivas, quer dizer de classe, programa e estratégia da diversidade de governos nacionalistas. É, antes de tudo, uma crise de conjunto de suas estruturas sociais e políticas, nos marcos de uma bancarrota capitalista de caráter mundial. A queda dos fenômenos nacionalistas opera como um acidente histórico que põe a descoberto o declínio capitalista e a gravidade da crise em curso. Isto condiciona e contamina os processos políticos de mudança que encabeça a direita. A tentativa “restauradora” da direita inaugura uma etapa de maior potencial revolucionário. Não inaugura uma etapa de arrefecimento da luta de classes, mas sim de acentuação desta luta. Parte da ruptura do equilíbrio político precedente e inicia um período de desequilíbrios políticos maiores.


Um exemplo eloqüente é o México, onde assistimos a um início de rebelião contra o governo e a perseguição exercida contra os trabalhadores e a juventude. Em Oaxaca, capital de estado, a Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) liderou uma demonstração massiva em repúdio ao massacre de seis professores e para exigir "punição para os culpados" e o aparecimento com vida de 22 pessoas desaparecidas. A demonstração chegou ao Zócalo e ao  Instituto Estatal de Educação Pública. A CNTE, do sindicato dos professores, rejeita a reforma da educação porque estipula que os postos de ensinos dos professores devem ser atribuídos pelo governo e não pelos sindicatos, como ocorria antes, impõe avaliações dos professores e denunciam a privatização da educação. Segue ainda não esclarecido o massacre de 43 alunos da Escola Normal Rural de Ayotzinapa em 2014. O confronto crescente entre os explorados, a juventude e o governo de Peña Nieto está colocando uma bomba-relógio nos próprios portões do imperialismo ianque, um país-chave para o Tratado Trans-Pacífico (TTP).  A luta de classes no México articula a América Latina com a revolução no centro do imperialismo mundial.


Esta fase, na América Latina, tem lugar em um marco internacional concreto. A ruptura da União Européia, com a saída da Grã-Bretanha, é um salto de qualidade na bancarrota capitalista. A UE foi o empreendimento contra-revolucionário político mais interessante da burguesia mundial, após a segunda guerra. É um bloco econômico, político e militar – neste último como sucursal da OTAN. Foi um instrumento de disciplinamento do proletariado e a arma política mais relevante para sustentar a restauração capitalista na ex União Soviética, encarada pela burocracia de cunho stalinista. Um quarto de século após a dissolução da URSS se destaca a desintegração de seu coveiro. As violentas contradições do capitalismo são impostas acima dos reveses e derrotas do proletariado.


O chamado Brexit expôs a vulnerabilidade do mercado internacional dos capitais mais importantes do mundo. Obriga o estado a operar um segundo resgate capitalista no centro nervoso do capital financeiro, quando nem sequer fecharam ainda as fissuras financeiras deixadas pelo resgate de 2008 – inclusive lhes foram superadas. Combina com a bancarrota declarada pelos bancos italianos; a corrida bancária parcial na Espanha; e acima de tudo a insolvência dos dois principais bancos na Alemanha. Na zona do euro se desenvolve um processo de desintegração, crises políticas e luta da classe operária – como é o caso da Grécia e a França, por um lado, e na Europa central, por outro. A dívida nacional desses países, à força de salvamentos de bancos, beira 300% do PIB. Um termômetro enérgico do impasse econômico é a dívida pública colocada a taxas de juros negativas, que passou entre janeiro e junho passado de U$ 1,3 bilhões para U$ 13,5 bilhões. Isso implica em uma ameaça para o sistema bancário e às companhias de seguros e um registro inapelável da tendência à deflação monetária e à depressão econômica. A retirada da Grã-Bretanha e a crise da zona do euro podem levar, alternativamente, a uma desintegração desses territórios, ou sua transformação em um território colonial da Alemanha seguida pela França.  Nos Estados Unidos, a vitória do Trump na interna republicana revela uma tendência chauvinista, que responde a um crescimento da rivalidade econômica e mesmo militar entre as potências capitalistas, manifestada no mar da China, na Ucrânia e na agressão imperialista no Oriente Médio e norte da África.


Este quadro mundial condiciona os recursos disponíveis para as burguesias latino-americanas para sair das experiências nacionalistas em seus próprios termos. A enorme superprodução de mercadorias e capital explica que a frente nacionalista internacional dos chamados BRICS passou para uma vida melhor, pois todos os seus membros enfrentam ameaças de falência. A aliança do Brasil com a China abriu caminho para uma reivindicação de ruptura comercial de parte da indústria siderúrgica instalada no Brasil.


A crise mundial tem um desenvolvimento desigual, bem como acontece com o capitalismo e a história em geral. A China, por exemplo, rebateu com um enorme gasto público o impacto da crise mundial em sua economia, o que levou a um 'boom' dos preços internacionais das matérias-primas. As derivações destas despesas foram responsáveis por 30% do PIB dos países produtores destes bens (Martin Wolf, "The Shifts and the Shocks"). A China enfrenta agora uma hipoteca da dívida fenomenal e, pela primeira vez, autorizou os procedimentos de falência. Nos últimos meses, a acentuação da queda das taxas de juro nos mercados internacionais de dívida pública, produziu um retorno parcial dos capitais de curto prazo para a América Latina, por suas altas taxas de juros. A falência econômica também produz seus próprios negócios: a venda de ativos da Petrobras lhe reabriu, embora de forma precária, o mercado da dívida externa. Esta volatilidade produto da crise não deve confundir-se com o financiamento de uma expansão econômica que, por ora, não tem fundamentos. A Argentina tem expandido sua dívida pública em U$ 25 bilhões, nos últimos meses, para pagar aos fundos abutres e financiar a saída de lucros e dividendos. Um novo ciclo de endividamento internacional tem bases mais restritas que no passado e as conseqüências mais explosivas.


Se a experiência macrista serve de guia de rota para as tentativas semelhantes que se esboçam na América Latina, o balanço provisório é claro: um aumento fenomenal da inflação, um crescimento do elevado déficit fiscal herdado, uma suba enorme das taxas de juros e uma aguçada recessão econômica. Os esboços democrático-eleitorais e o apoio massivo da oposição patronal para as suas medidas mais decisivas, não foram suficientes para evitar uma resistência, que já é enorme, ao  'rodrigazo' tarifário. O macrismo foi posto na defensiva, em seu curto período de governo por uma revolta popular contra o tarifaço, que também causou um princípio de fratura no aparato estatal (amparo judicial a favor dos usuários). Perfila-se, além disso, um novo ciclo de reivindicações salariais, apesar do apoio da burocracia sindical à nova gestão. O governo macrista ainda tem de encontrar os recursos econômicos e políticos para sua política de ajustes, e então impô-los através de uma intensa luta de classes. É um regime dividido entre camarilhas capitalistas, sem base parlamentar própria, condicionado no governo pela exigência de ganhar as eleições parlamentares no próximo ano.


Tesis da Conferencia (II)